segunda-feira, 11 de junho de 2012

Pessoas que falam 'errado' (1)

Olá, olá, queridos netinhos!

Você já deve ter ouvido falar de "My Fair Lady", um lindo músical de 1964 estrelado pela belíssima Audrey Hepburn, a eterna "bonequinha de luxo" e por Rex Harrison, não?
Caso não tenha, eu posso fazer um breve resumo:

Audrey interpreta Eliza Doolittle, uma mendiga que vende flores em Londres, e que por um acaso do destino é escolhida pelo professor bonitão de fonética Henry Higgins como "cobaia" para uma aposta feita entre ele e um amigo: ele deveria "consertar" a fala de qualquer pessoa 'bronca' de tal modo a inseri-la na sociedade e fazê-la passar como uma pessoa de classe.

O filme é adorável, e eu sugiro que você não deixe de ver a  transformação de Eliza, de simples florista a uma dama com pescoço de ganso (bom, o pescoção é de fábrica, ser ou não uma dama não interfere em seu comprimento).

O post de hoje tem muito a ver com esse filme, porém só discutiremos esse clássicão mais tarde.
Agora irei abordar um assunto que pode parecer bobagem a muitas pessoas, mas não é. Algo muito simples, mas ao mesmo tempo muito cruel e ultrapassado, o chamado Preconceito Linguístico.

"UQUÊÊÊ? Com tantos preconceitos horrorosos por aí, com tanto homossexual sendo espancado, com tantos negros sendo humilhados, com tantas mulheres sendo desvalorizadas você vem me falar de uma bobagem de preconceito contra gente ignorante que fala errado?"

Muitas pessoas, infelizmente, irão perguntar isso ao ler a minha pequena introdução acima. Para respondê-las, terei que pedir proteção aos meus santos, São Bagno, São Perini, Santa Stella Maris, entre outros, e respirar beeem fundo. Afinal, se você, meu querido leitor, pensar assim, vou ter um bom trabalho ao tentar te convencer do seu equívoco - se é que eu posso dizer isso desse modo...

Vamos lá:
Entende-se por preconceito linguístico qualquer tipo de julgamento depreciativo contra variedades linguísticas. Como sei que essa definição tem cara de "wikipedia", vou facilitar:

Sabe aquele seu colega de trabalho que fala "Eu tarra com uma fome ontem." ao invés de "eu estava com uma fome ontem", ou a amiga da sua mãe que diz que "precisa de comprar fraldas" ao invés de "precisa comprar fraldas" ou mesmo o porteiro do prédio onde você mora que te avisa que "chegou uns embrulho procê", engolindo um plural e juntando duas palavras em uma só? Quantas vezes você já os corrigiu, mentalmente ou verbalmente, quantas vezes já riu de um deles, ou já, no fundo, no fundo, se sentiu um pouquinho superior por não cometer tamanhos "erros de português?"  Ninguém, eu imagino, pode atirar a primeira pedra em relação a isso. Pelo menos uma vez com alguma pessoa você já se utilizou da trinca depreciativa do riso-correção-desprezo ao ver uma pessoa cometendo um "assassinato" ao português de tamanhas proporções: ou já zombou, ou já corrigiu, ou já desprezou.


Pois é. Todos nós já fizemos isso. E o pior, alegamos que isso é bom para a pessoa, afinal, estamos ensinando o português correto. Se a pessoa não sabe falar, alguém deve corrigí-la, não é?

NÃO! Por que essa história de que o português correto é um só não existe! Sabe por quê? 
Primeiramente por que não existe apenas um português, existem vários! O português que eu, Clara, 21 anos, nascida no Rio e criada em Brasília e em Minas Gerais, filha única de uma pedagoga, falo é completamente diferente do português de minha querida avó odiadora, 80 e tantos anos, nascida em Mosqueiro, filha de uma costureira semianalfabeta que deu a luz a outros 9 filhos, fala. A idade, o meio familiar, o local de criação, a condição financeira, o estudo, tudo isso "modifica" a língua, ou melhor dizendo, faz a mesma variar.

O que gramáticos turrões como Pasquale ou Ulisses defendem como "português correto", logo, único,  nada mais é do que o português das gramáticas normativas, aquelas gramáticas que usamos na escola, e que defendem que só existe um português correto, e que somente ele deve ser utilizado.

"Mas não é isso que é certo? Se você não segue o que a gramática diz, você está errada, não é? Você estará cometendo um grande erro de português."

NÃO!  Em segundo lugar, não existe "erro de português" na fala. Existe variação. A língua varia, muda com o passar do tempo. O que hoje é considerado erro, amanhã pode ser o "certo", sabia? Por isso não pode ser chamado assim. Se você disser que tudo que se transforma é errado, então é um absurdo a lagarta virar borboleta, o cupim virar içá e o patinho feio dos contos de fada virar um cisne bonito. O mesmo ocorre com a língua. A língua não é algo travado, fixado, imutável. Ela varia, se modifica ao longo dos anos.

Pensa comigo: Há muitos e muitos anos atrás, quando não existia "você", se usava o "Tu" e o pronome de tratamento Vossa Mercê. Esse pronome floreado e pomposo foi sofrendo mudanças fonéticas e se transformou em Voismicê ou Vosmicê , depois virou o conhecido Você. Esse pronome ( que, acredite se quiser, muitos gramáticos não consideram pronome pessoal de terceira pessoa que substitui, no caso, o pronome Tu, mas sim pronome de tratamento, igual Vossa Senhoria ou Vossa Santidade. ) hoje em dia faz parte da chamada norma culta, é normalmente utilizado, sem problemas, sem grilos e sem preconceitos. Qualquer pessoa usa o pronome, seja escolarizado, analfabeto, rico, pobre, novo, velho - salvo os que usam o pronome Tu, como uma boa parte dos paraenses, por exemplo. Fica ao gosto do freguês.

Mas você (opa, olha que lindo ele é, esse pronome!) acha que foi sempre assim? Que o Vossa Mercê virou Você e todo mundo achou lindo, ergueu suas taças e brindou a mudança? Lógico que não. Para o você ser aceito, rolou muito preconceito, muita briga. Mas se cristalizou, foi aceito. Entrou para o hall das Palavras Aceitas, e hoje bebe champagne com seus colegas da língua.

Outro caso de variação, descrito pelo mega-blaster-top de linha  linguísta Marcos Bagno entra-na-minha-casa-entra-na-minha-vida-me-adota em seu livro "Preconceito Linguístico" (referências no final do post), é a substituição do L por R em encontros consonantais, como em "ingrês" ou "praca". Muita gente adora dizer que isso é coisa de analfabeto, de pobre, de isso e daquilo, sem saber que, na verdade, esse processo de transformação fonética ocorreu diversas vezes na história da nossa amada lingua. Por exemplo, as palavras cravo, dobro, fraco, frouxo e prazer, vieram lindas e radiantes do latim clavu, duplu, flaccu, fluxu, placere, respectivamente. Notou a diferença?

Pois é, assim como houve essas variações, haverá outras. A língua é assim, ela muda. Se ela não mudasse, não falaríamos português-brasileiro, falaríamos Latim! Só para lembrar, nossa língua descende de uma 'vertente' do latim chamada de Latim Vulgar. Ou seja, latim do povão merrrmo, todo "errado". Mas virou português. Esse português pomposo que Pasquale e seus coleguinhas defendem, é tataraneto do latim do povão, do latim incorreto, inculto. Irônico, não?

Aproveitando que eu falei sobre gramáticos turrões, vamos conversar sobre algumas bobagens frases que eles e alguns jornalistas adoram falar por aí:

"Português- um idioma que, de tão maltratado no dia-a-dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o tem como língua materna" - Pasquale Cipro Neto
"Sempre me perguntaram onde se fala o melhor português. Só pode ser em Portugal!" - Sérgio Nogueira Duarte
"É português estropiado que no Brasil se fala(...)" - Napoleão Mendes de Almeida (ARGH, ESSE CARA É DE ENLOUQUECER QUALQUER UM COM TANTO PRECONCEITO BURRALDINO!)

Nota-se que todos eles, assim como milhares e milhares de falantes da língua, acham que só se fala "bem" a língua portuguesa em...Portugal! Faz sentido, né? Português, Portugal...

NÃO!  Isso é um absurdo! O Brasil é um país sul-americano, Portugal é um país europeu. Tem um oceano de culturas, fronteiras, história, riquezas, costumes diversos separando os dois países...Aliás, tem um oceano de água mesmo, literalmente!
Nós só falamos "português" - e não "brasileiro" - por questões culturais, aquela velha história do-país-europeu-que-colonizou-outro-país-e-matou-e-desmatou-e-tirou-suas-riquezas-naturais-e-deixou-de-prêmio-de-consolação-uma-língua-e-uma-religião, conhece? Pois é.
Nossa língua (ou 'nossas línguas'?) nada mais é do que uma boa mistura de línguas indígenas, com um punhado de europeias (línguas de colonizadores, imigrantes, enfim...), várias xícara de chá de línguas africanas e uma boa dose de anos de evolução em território latino-americano. Tem como esperar, depois de conhecer essa receita tão comprida  que o português brasileiro possa ser igual ao português europeu? Não, não tem.  São duas línguas semelhantes, que possuem origens semelhantes, mas que se diferem em vários sentidos.

"Ah, então você vai me dizer que nossa língua é uma mistureba e que por isso pode ser um samba do criolo doido? Agora vale tudo, então? É isso que vocês defendem, que se danem as regras gramaticais?"

NÃO! Essa afirmação louca é a preferida de todos aqueles que acham que  linguístas, estudiosos da língua e de seus fenômenos, são, como dizia o "professor" Napoleão ( aquele que disse que se fala "português estropiado no Brasil ), "uns ociosos" que defendem a língua falada "por caminhoneiros, cozinheiras e etc". Ôôô, homenzinho detestável e preconceituoso!
Dizer que defendemos uma espécie de orgia linguística é distorcer todo o trabalho sociolinguístico de anos e anos. Não é essa a proposta!

 Como diria o linguísta Mário Perini,

"condenar uma construção ou uma palavra ocorrente como incorreta é mais ou menos como decretar que é "errado" que aconteçam terremotos ( não seria melhor que não acontecessem?). Mas eles acontecem, e um cientista não tem remédio senão reconhecer os fatos."

Ou seja, o linguísta está aqui para isso, para estudar, pesquisar, desenvolver pesquisas sobre, e, principalmente, aceitar esses fatos. Há diversas "línguas brasileiras", e se milhões e milhões de falantes consegue se comunicar, estabelecer contato com a sociedade através delas, quem são Pasquale, Napoleão ou Sacconi para dizer que eles não sabem falar corretamente?
Clica que aumenta. A voz do wikipedia é a voz de Deus.

(Ah, o mais engraçado nesses "defensores de um ultrapassado purismo gramatical" é que eles chegam ao ponto de procurar "erros" em clássicos da literatura, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, etc. Hilário!)

Deu para entender? Não defendemos uma anarquia linguística, por assim dizer. Defendemos a extinção de um preconceito, de uma defesa da tese que diz que variações linguísticas não passam de erros grosseiros, assassinatos do português, indicador de status, nível social ou qualquer uma dessas besteiras.

Ah, sim, já ia me esquecendo!
Veja o filme legendado: http://youtu.be/Rg7a3iaMrCM
No começo do post eu falei sobre o filme My Fair Lady, lembra? Aquele com a linda Audrey e seu pescoção glorioso.

Como você deve saber (ou perceber, caso não tenha visto o filme), é lógico que o professor Higgins consegue transformá-la em uma dama, segundo os parâmetros da sociedade daquela época. Ela passa a falar "corretamente" e, linda do jeito que era, foi só ensinar uns trejeitos, colocar uns trapinhos chiques, umas jóias no pescoção e pronto!, ela virou uma bela lady.

Só que em determinado momento, professor e aluna brigam, e ela acaba voltando para as ruas. Não a Eliza florista, mas a bela dama Eliza, com roupas chiques e falar "culto". Seus amigos floristas, acostumados com a Eliza usando farrapos e falando igual a eles, não a reconhecem e neste momento ela parece se perguntar " E agora? Não pertenço à alta sociedade, mas também já não pertenço ao meu lugar de origem".
Pelo visto, quando a ensinou a língua considerada de prestígio, o professor não imaginou que iria lhe causar problemas, não é mesmo? Afinal, ela deixa a alta sociedade, onde se utiliza essa língua prestigiada e agora não tem para onde ir.
Trazendo essa questão para os dias atuais, podemos pensar em mais uma coisa que os gramáticos chatinhos adoram distorcer : A questão da adequação de determinada variante da língua ao contexto situacional.
Explico:  Mandar um "a gente foi traçar um hamburgão ali, porque bateu uma larica dos infernos" como resposta para uma pergunta de seu chefe pode causar um certo...constrangimento para os presentes na situação. Ou contar para sua sobrinha de 10 anos que os problemas em seu computador são causados pelo efeito da "magnetoimpedância gigante em objetos superparamagnéticos" (a escolha destes termos científicos foi completamente aleatória ;) ) vai soar...pedante! Isso acontece porque há situações e situações para se falar um palavrão cabeludo, uma gíria ou um termo científico erudito demais. A escolha da variante linguística x para a situação comunicacional y pode fazer uma grande diferença no resultado que o falante espera obter. Por isso, é importante que se conheça essas diferenças de contexto e as diversas variantes da língua, para que se possa relacioná-las de maneira coerente.
 Isso vale para professores, pais, filhos, tios, amigos, enfim, qualquer falante de língua.
Quem sabe esse não seja o primeiro passo para a extinção desse preconceito bobo e ultrapassado?
(Apesar de que, bem...o ideal era que se ensinasse isso nas escolas...mas aí já é assunto para outro post)



Para finalizar (ou resumir, relembrar, tietar um pouquinho o mestre), uma frase de Bagno que, na minha opinião, diz tudo:

"Ao contrário da Gramática Tradicional, que afirma que existe apenas uma forma certa de dizer as coisas, a Lingüística demonstra que todas as formas de expressão verbal têm organização gramatical, seguem regras e têm uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável. Ou seja:
nada na língua é por acaso."

É isso, netinhos. Não vou me desculpar pelo longo post. Vou agradecer por você ter chegado até aqui.
Beijos, Abraços e livros da editora Parábola
(e da editora Contexto!)
=)


P.S.: Eu, como simples graduanda de Letras, não possuo bagagem suficiente para falar sobre tudo o que gostaria sobre preconceito linguístico. Mas posso indicar pessoas que possuem! Essa área enoorme chamada linguística, bem como suas "vertentes", como a sociolinguística, por exemplo, é fruto de pesquisa de muitos autores incríveis, como os já citados Marcos Bagno e Mário Perini, e outros como  Rosa Virgínia Mattos e Silva, Maria Cecília Mollica, Maria Luiza Braga, entre outros vááários!

Vamos às referências:

www.marcosbagno.com.br - nesse site você encontra diversos artigos do autor, bem como entrevistas, livros publicados e até mesmo uma carta à revista Veja interessantíssima.

BAGNO, Marcos, A língua de Eulália: novela sociolingüística. São Paulo: Contexto.
_______, Português ou brasileiro ? um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial.
_______,O preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 12a edição. São Paulo: Edições Loyola.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia,O português são dois...: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial.
MOLLICA, Maria Cecília & BRAGA, Maria Luiza (orgs.), Introdução à Sociolingüística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto.
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. São Paulo: EDUSP,
TARALLO, Fernando, A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática.